sábado, 10 de novembro de 2012

Saiba quem é o primeiro brasileiro a fazer sucesso como mangaká profissional!!

 
Lucas Thiago Furukawa, ou Kamiya Yuu
O mangaká brasileiro Kamiya Yuu em sua mesa de trabalho
Como você imaginaria o estúdio de um mangaká profissional? Estantes de mangás, mesas cobertas com pilhas de ilustrações, rascunhos, story boards e materiais do ofício como pincéis, lápis, canetas e réguas espalhadas por todo canto, certo? Pelo menos era essa a imagem que eu tinha até conhecer o desenhista Kamiya Yuu. Mas antes de saber como é o seu ambiente de trabalho, é imprescindível fazer uma apresentação do próprio autor: ele é o primeiro mangaká profissional brasileiro a ter suas obras publicadas por uma editora japonesa.
Da mesma forma que dizem que “todo brasileiro já quis ser um jogador de futebol”, a maioria dos adoradores de anime e mangá um dia sonhou em ter uma obra de sua autoria publicada. Kamiya Yuu não só conseguiu realizar tal feito, como também provou que o mercado de quadrinhos nipônico não é tão fechado para artistas estrangeiros como aparenta ser. Quando a equipe da redação visitou seu apartamento, na província de Saitama, outra grande surpresa!
Exceto as estantes de mangá, nada de milhões de papéis com desenhos e rabiscos espalhados pelo ambiente de trabalho. Em vez de bagunça, muita organização. Quando seguimos em direção ao seu “escritório” (Kamiya trabalha em sua casa) entendemos o porquê: só sua mesa tinha 6 monitores de computador e um tablet fora das proporções convencionais. Sua escrivaninha mais parecia uma cabine de controle retirada de um filme no melhor estilo Guerra nas Estrelas. Tanta tecnologia dispensava o desenho a mão. Na tela do enorme tablet, traços digitais do seu mais novo mangá: Greed Packet Unlimited.
No mesmo ambiente, outros três assistentes, também devidamente equipados com máquinas de última geração, trabalhavam risco por risco com extrema cautela. Se um traço saía errado, nada de borrachas: um toque no teclado basta para apagar o erro. Cada monitor da mesa de Kamiya tem uma função. Em três deles, o chefe pode observar o andamento do serviço de seus ajudantes, enquanto nos outros restantes estão abertos dezenas de programas como Photoshop e ComicStudio. Porém, com um toque da ponta de sua caneta digital sobre o tablet, Kamiya pode alterar a configuração das telas, arrastando-as para lá e para cá. Como em um concerto de música em que o maestro comanda o ritmo da orquestra, o mangaká hightech organiza o trabalho do dia-a-dia.
“Não são todos os mangakás que utilizam equipamentos e softwares tão modernos. A maioria ainda prefere desenhar com papel e tinta à moda antiga”, explica Kamiya, em japonês sem sotaque. Apesar da fisionomia mestiça puxada mais para o lado verde-amarelo, o autor não mantém fortes vínculos com a terra-natal, muito pelo contrário, “às vezes me dou conta de que não nasci aqui. Raramente uso o português. Entendo tudo que ouço no idioma, mas sinto dificuldade em montar uma frase”, comenta. Kamiya chegou ao Japão cedo, aos 7 anos, quando seus pais decidiram se tornar dekasseguis. Na época, o mangaká ainda era chamado pelo seu verdadeiro nome: Lucas Thiago Furukawa.
Dupla Identidade
Lucas Thiago Furukawa
– As lembranças do Brasil remetem à vida no interior, quando a família de Lucas morava em Uberaba, Minas Gerais. Assim como muitos nikkeis, seus pais resolveram se mudar para o Japão atrás de estabilidade financeira no começo da década de 90. Sem muito contato com a cultura nipônica até então, Lucas só sabia falar “arigatô”. A comunidade brasileira ainda não desfrutava da infra-estrutura atual, por isso o choque cultural foi grande quando ele entrou para o shogakko (primário) nas escolas japonesas. Por ser “diferente” e por não conseguir se comunicar, Lucas inevitavelmente sofreu nas mãos dos colegas de classe.
Mas à medida que os anos se passavam, a barreira do idioma ia se tornando menor, e uma nova paixão ia crescendo. “Comecei jogando videogame. Gostava do gênero RPG e na época que estava entrando para o chuugaku (ginásio) já conseguia ler em japonês, o que me motivou a assistir animes e ler mangás”, relembra. Depois das turbulências vividas na fase de adaptação ao novo país, Lucas se identificou completamente com a cultura pop e se tornou um legítimo otaku do arquipélago.
Acima, o silencioso ambiente de trabalho do desenhista e seus assistentes – um paraíso otaku: mangás, bonecos miniatura e computadores de última geraçãoAssim como muitos fãs das animações e quadrinhos japoneses, Lucas decidiu se aventurar como desenhista. Quando tomou gosto pela coisa, um colega que havia percebido o seu potencial o aconselhou a participar do Comic Market, evento que reúne milhares de mangakás amadores em Tokyo para expor seus trabalhos. Em menos de um mês, Lucas criou uma história que envolvia personagens de mangás já consagrados, no melhor estilo “dojinshi” e se inscreveu na exposição. O resultado não foi dos melhores, mas a experiência havia lhe agradado. Começou a apresentar seu trabalho em todas as edições da feira até que um dia o inesperado aconteceu. Um “olheiro” de uma uma editora de mangás havia gostado do seu estilo.
Kamiya Yuu – Apesar de não estar satisfeito e considerar o próprio traço “feio” na época, Lucas recebeu a proposta de fazer ilustrações para o site da editora. Os dias de “bico” duraram aproximadamente meio ano, até o rapaz adotar o pseudônimo “Kamiya Yuu” e ser convidado a publicar sua própria obra nas edições mensais da revista Dengeki Maoh. Como qualquer outro mangaká profissional, Lucas, ou melhor, Kamiya Yuu, tinha direito a 33 páginas para elaborar a história que quisesse, é claro, sempre com a supervisão de um editor. Com a nova proposta – e com as economias dos bicos – ele se mudou para a província de Saitama, próxima à região que faz divisa com Tokyo. Começava uma nova vida sob o codinome Kamiya Yuu.
Antes de se isolar no escritório para desenhar o primeiro capítulo de “Earise” (Earth), o autor lembra que estava empolgado e se sentia preparado para lidar com a nova profissão. Ledo engano, comentaria mais tarde. “Durante a produção das 33 páginas que dura aproximadamente 20 dias, acho que consegui dormir um total de 50 horas. Foi realmente muito sacrificante e cansativo, sem contar a pressão. (Além de seu mangá, outros profissionais do ramo, alguns com anos de experiência, também desenhavam para a publicação). Fiz e refiz cada página várias vezes, pois nada me satisfazia. Foi realmente um inferno!”, conta Kamiya.
A experiência parece ter sido bastante traumática, pois o mangaká afirma que sentiu mais alívio do que alegria quando segurou nas mãos o primeiro tankobon de Earise. (Depois que os capítulos dos títulos publicados nas revistas acumulam um certo volume, eles ganham o tradicional formato livro, os chamados tankobon). Depois de três anos compenetrado com Earise, e de certa forma, ganhando espaço no mercado do gênero, Kamiya recentemente lançou outra obra, intitulada “Greed Packet Unlimited” pela mesma editora. Além da segunda empreitada, os pedidos de ilustração foram aumentando, fazendo com que o mangaká pedisse a ajuda de mais três assistentes, sendo que um deles, o responsável pelas artes em 3D, divide o mesmo apartamento. As outras duas ajudantes também costumam “morar” na casa em épocas de muita correria.
Em compensação, Kamiya pôde bancar o equipamento supermoderno, facilitando o serviço diário. Por conta do processo que utiliza tecnologia de ponta, um dos empecilhos que o desenhista encontra atualmente é contratar assistentes que saibam mexer nos softwares e tablets de última geração.
Entrevista – Lucas Thiago Furukawa (ou Kamiya Yuu)
- Sobre a vida no Japão
Made in Japan – Lembra da infância no Brasil? Como era?

Lucas -
Não me lembro de muita coisa, a não ser das picadas dos mosquitos! Na época, minha família morava em Minas Gerais, num sítio em Uberaba. Acho que a vida no interior marcou minha infância e minhas lembranças do Brasil.
Lucas exibe seus antigos e recentes trabalhos: de “dojinshi”, da época em que era amador, ao sucesso como autor de uma das principais editoras do JapãoMJ – Como foi a adaptação nos primeiros anos de Japão?
Lucas –
Meus pais vieram como dekassegui e me colocaram logo em uma escola japonesa. Ia pro shogakko (primário) carregando um dicionário bilíngüe, porque na época só sabia falar “arigato”. Não entendia nada do que o professor falava.
MJ – Desde quando se interessou pelo mangá e por quê?
Lucas -
O interesse pelo mangá surgiu na medida em que eu ia aprendendo o japonês. Jogava (e ainda jogo) bastante videogame, o que me incentivava ainda mais a entender o idioma. Logo, fiquei viciado nesse universo de animes, mangás e videogames!
MJ – Já fez aula de desenho?
Lucas -
Nunca.
MJ – Mantém algum tipo de ligação com o Brasil? Já voltou para lá desde que chegou ao Japão?
Lucas -
Voltei três vezes desde que cheguei aqui, mas sempre para visitar os parentes. Não mantenho nenhum tipo de ligação ao Brasil, a não ser com familiares via internet. Em época de Copa do Mundo torço para a seleção brasileira, mas acho que é só isso mesmo (risos).
- Sobre o autor
MJ – Por que o codinome Kamiya Yuu?

Lucas -
Muitos autores preferem ter um pseudônimo em vez de colocar o nome verdadeiro. Não tenho um motivo especial por ter escolhido esse nome. Sempre achei a sonoridade de “Kamiya” bem legal. Aí foi só colocar o Yuu e pronto!
MJ – Como surgiu a oportunidade de ser um profissional?
Lucas –
Pouco mais de três anos atrás, comecei a participar do Comic Market, em Tokyo, um evento onde milhares de mangakás amadores se reúnem para vender suas obras. É a maior convenção de quadrinhos do mundo. Na época, eu ainda criava histórias com personagens de mangá já bastante conhecidos. Um “olheiro” de uma editora especializada gostou do meu traço e me propôs a fazer uns bicos para o site da empresa. Depois de seis meses fazendo ilustrações, a editora pediu para que eu inventasse uma história própria para ser publicada na revista mensal.
MJ – Qual a experiência que mais lhe marcou como mangaká?
Lucas –
No começo de Earise, meu primeiro mangá, foi um inferno. Estava empolgado por estreiar como mangaká profissional, mas a pressão era muito grande. Varei muitas noites desenhando os capítulos diversas vezes, até sair num nível razoável. Era trabalho que não acabava mais. Depois você acaba se acostumando com o ritmo e ficando mais experiente.
MJ – Como é sua relação com os fãs leitores?
Lucas -
Normal, eu acho. É sempre ótimo receber elogios, mas nem sempre as críticas são construtivas. Aprendi a lidar com isso ao longo do tempo, mas às vezes não dá para simplesmente ignorar. Por exemplo, quando você está super ocupado e chega um email desse tipo, acaba com seu humor e atrapalha o andamento do trabalho.
- Sobre a obra
MJ – Do que se trata a atual obra Greed Packet Unlimited?

Lucas –
O enredo se passa em um mundo onde você pode comprar magias pelo celular, que são extremamente caros. Por conta disso, a heroína, Nokia (todos os personagens têm nomes relacionados a companhias de celular), constrói uma irmã por meio de magias, além de enfrentar seres estranhos e outros vilões.
MJ – Como surgiu a ideia do enredo?
Lucas -
Tenho ideias malucas na cabeça a todo momento (risos). Criar histórias nunca foi um problema para mim.
- Sobre o trabalho
MJ – Como você descreve o trabalho de um mangaká profissional?

Lucas -
Muito trabalho! Não tenho folga e preciso cumprir os prazos, por isso, muitas vezes fico trancado por semanas em casa. É uma rotina muito cansativa, por isso é preciso gostar muito do que faz.
MJ – Como você avalia o mercado de mangá atual?
Lucas -
Hoje em dia, existem muitas revistas semanais e mensais que publicam mangás no Japão. Por isso, muitos “olheiros” de diversas editoras estão atrás de mangakás amadores de talento em eventos como o Comic Market. A cada ano aumenta o número de autores e obras, o que faz com que a qualidade dos produtos fique cada vez melhor.
MJ – E em relação ao salário, ganha-se bem?
Lucas -
Depende de cada autor. Tem muito mangaká com obras que não vendem muito, ou não conseguem arranjar um “bico”. Alguns realmente precisam se preocupar com o dinheiro. Outros se tornam milionários com apenas um título. No meu caso, digamos que, com Greed Packet Unlimited e outros trabalhos de ilustração, consigo pagar meus assistentes, manter os gastos da casa e comprar eletrônicos, tanto para hobby, como videogames, ou para o trabalho, como computadores.
MJ – Ser brasileiro já chegou a ser algum tipo de barreira na sua profissão?
Lucas – Até agora, não. Atualmente, existem muitos mangakás asiáticos, principalmente coreanos. Nunca ouvi alguém reclamar sobre preconceito. Muito pelo contrário, acho que as editoras de mangá estão absorvendo bastante talentos estrangeiros.
MJ – Que tipo de conselho daria para pessoas que queiram ser mangaká profissional?
Lucas -
Acho que não sou a pessoa certa para dar conselhos, até porque tenho muito o que aprender ainda. Posso dizer apenas que é preciso se dedicar muito, se entregar de corpo e alma para o trabalho.
O dia-a-dia de um mangaká profissional
Geralmente, Kamiya acorda lá pelas 9h. Mãos à obra. O expediente no trabalho começa em torno das 11h e, dependendo do dia, Kamiya e seus assistentes só largam a caneta digital lá pelas 22h ou 23h. Não existe fim de semana. Por isso, há épocas em que o desenhista mal pode sair de sua casa por dias. “É preciso gostar muito do que faz, porque não tem descanso”, conta. Conheça a seguir, o dia-a-dia do autor, desde o começo da produção de um capítulo até a revista pronta nas bancas:
Dia 26 – “Já tenho o desenrolar da história, do começo ao fim, pronto em um arquivo de texto com todas as falas dos personagens. Dividi o enrendo de acordo com o número de capítulos previstos. Começo a checar o “script” mais ou menos no dia 26 de todo mês, depois que enviamos o capítulo anterior para a gráfica.”
Dia 27 – “Me encontro com o editor da revista no dia seguinte, já com o rascunho inicial pronto. Faço os rabiscos em um caderno qualquer, a lápis mesmo. Nos reunimos em qualquer café ou restaurante e ficamos praticamente o dia todo conversando a respeito do capítulo.”
Dia 28 – “Cada mangaká tem sua própria maneira de produzir o capítulo, por isso, não existe uma forma convencional. No meu caso, faço as devidas mudanças indicadas pelo editor e jogo as falas nos balões. Também organizo os quadrinhos de acordo com o projeto. Esse processo inicial demora pouco mais de 2 horas.”
Dia 28 a dia 2 do mês seguinte - “Ainda no mesmo dia, começo o ’shitagaki’, ou seja, faço o rascunho já com o tablet. Já sei a delimitação de cada quadro e o espaço para os balões de fala. Termino de desenhar as 33 páginas em aproximadamente quatro dias.”
Dia 2 a 7 – “Graças ao programa e ao sistema moderno que utilizo, posso clarear o desenho inicial, do desenho definitivo. Aqui, em azul, está o rascunho que fiz nos quatro dias anteriores. Agora o foco do trabalho é reforçar o traço dos personagens.”
“A partir daqui, divido o trabalho com os assistentes. As partes monótonas eu repasso para eles (risos). Eu me foco mais ainda nos personagens, colocando diferentes tonalidades de cinza para “colorir” algumas partes.
Reparem que há traços que expressam movimentos. Dessa forma, o desenho ganha mais emoção.”
Dia 7 a 15 – “Uma das assistentes é responsável em desenhar paisagens e contextualizar o ambiente em que se passa a história. Nesses dois quadrinhos ao lado você pode reparar a diferença: enquanto faço a personagem, a minha ajudante completa com o fundo. É o processo chamado arte-final.”
Dia 12 a 14 – “Enquanto fazemos o capítulo, envio a prévia para o editor. Se ele não tiver sugestões ou pedidos de mudança (coisa que raramente acontece), conseguimos acabar o trabalho mais ou menos no prazo. Também aproveitamos o processo para fazer os retoques finais.”
Dia 14 - “O prazo de entrega acontece por volta do dia 14. Confiro página por página para ver se não há nenhum erro, ou se deixei de complementar algum detalhe. Se as 33 páginas estão ok, envio para a editora. Caso eles aprovem, a arte vai para a gráfica e….”
Dia 27 – “Finalmente, depois de alguns dias sendo compilado à revista com capítulos de outros autores, o mangá chega impressa às bancas no dia 27. Você está muito enganado se acha que eu estava descansando nesse período. Enquanto o mangá está na gráfica, aproveito para fazer “bicos” como ilustrador de livros e games.”

Esta reportagem foi publicada originalmente na revista Made in Japan 137, de fevereiro de 2009


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