( XD Falam como se os otakus fossem algo novo desse ano ainda)
De olhos quase puxados
Surge uma nova tribo, os otakus, jovens viciados em animação japonesa que vivem num mundo totalmente virtual
Camilo Vannuchi
Os pais olham desconfiados. Acham que desenho animado é coisa de criança, e não de jovens de 20 anos. Os demais garotos da mesma idade os desprezam. Afinal, só um nerd dispensaria as baladas para ficar trancado no quarto, devorando quadrinhos japoneses. Mas quem entra no universo dos mangás, animes, cosplay e garage kits encontra mil justificativas para não trocar sua paixão virtual por nada. Quando reunidos em eventos e feiras, cada vez mais comuns no Brasil, os fãs de animação japonesa podem exercer sua fantasia sem dar ouvidos aos desaforos de quem não faz parte da tribo. Em outubro, dez mil pessoas são esperadas nos três dias da Animecon, em São Paulo, a maior convenção da turma na América Latina. Lá, alienígenas são os que nunca ouviram falar em Samurai X ou Evangelium, duas das séries de desenho animado de maior sucesso no mundo. Não, eles não são nerds. São otakus (pronuncia-se otákus). A expressão nipônica, formada com a junção dos termos “casa” e “você”, não tem tradução literal. Seu significado se aproxima de “o outro em seu casulo”. O casulo, no caso, abraça um planeta paralelo, habitado por curiosas figuras de queixo triangular e olhos esbugalhados.
Consolidada no Japão, a tribo dos otakus se expande em território verde-e-amarelo, onde já conta com lojas e feiras especializadas nos quadrinhos e vídeos. Na Rede Globo, três séries são exibidas nas manhãs de segunda a sexta: Sakura Card Captor, Dragon Ball Z e Digimon 2. Essas e outras produções também fazem sucesso na Rede Bandeirantes e em canais pagos como o Cartoon Network e o Locomotion. No país de origem, centenas de histórias de mistério, violência e sexo povoam os gibis e os desenhos animados, assim como romances açucarados. A febre é tão intensa que a principal revista japonesa de quadrinhos, a Shonen Jump, atinge a surpreendente marca de cinco milhões de exemplares semanais. Toda a indústria audiovisual depende dos otakus. O processo é simples: um mangá (gibi) bem-sucedido vira anime (desenho animado) rapidamente e logo se transforma em fita de videogame. Fanzines hentai (eróticos) e garage kits (miniaturas) com os personagens não tardam a invadir as prateleiras.
Incentivo – As idades dos fãs variam. Pequenos admiradores de pokémon são otakus, assim como Sérgio Peixoto, o veterano editor das revistas especializadas Anime Ex e Hanime. Aos 37 anos, ele transformou seu hobby em profissão. E nem sempre foi compreendido. “Meus pais queriam que eu me tornasse um contador. Para eles, eu ainda não cresci”, admite. Considerado um dos papas dos otakus no Brasil, Peixoto incentiva os fãs a resistir à enxurrada de críticas. No primeiro domingo de cada mês, às 10 da manhã, ele leva 200 fãs para o Centro Cultural São Paulo, onde exibe gratuitamente animes inéditos no Brasil em uma tevê de 29 polegadas. Peixoto recorda seu primeiro gibi japonês. “Estudei na Liberdade (bairro oriental de São Paulo) e vivia folheando revistas nas livrarias. Em 1979, fui trabalhar como office boy e comprei um mangá com meu salário.”
Não raro, fãs se matriculam em cursos de japonês movidos pela sede de beber direto na fonte. Peixoto aprendeu o idioma sozinho, com a ajuda de uma tabela com o alfabeto e um dicionário. “Os otakus lêem muito, são grandes conhecedores de filmes e mergulham de cabeça na cultura oriental. São pessoas inteligentes e sonhadoras, apesar de tímidas”, acredita ele. Júlia Cleto é uma dessas pessoas tímidas a que Peixoto se refere. Aos 20 anos, ela encontrou nos quadrinhos sua identidade secreta, a inocente Sakura Kinomoto, de apenas dez anos. “É uma estudante da quarta série que tem a missão de recuperar 52 cartas mágicas desaparecidas, sempre acompanhada pelo ursinho Kero”, conta. Ela resolveu empregar tempo e dinheiro em um disfarce da heroína. Travestir-se em personagens dos desenhos é uma prática comum entre otakus. Os adeptos são chamados de cosplayers (do inglês, “aquele que atua com fantasia”). Até a popstar Madonna resolveu brincar de cosplayer e, na turnê atual, Drowned World Tour, encarna uma guerreira japonesa vestindo kimono e peruca preta. Para Júlia, o cosplay é uma ferramenta para vencer a timidez. “Nas convenções, muita gente vem falar com quem está fantasiado. Acabamos fazendo amigos”, diz.
Foi assim que Júlia conheceu Daniel Sicchi, 22 anos, ganhador de prêmios de melhor cosplayer nas maiores convenções brasileiras. No ano passado, Daniel vestiu-se de Goku, o galã da série Dragon Ball Z, para ir ao cinema. “Pareço um E.T. Se precisar, pinto meu cabelo de loiro por causa do personagem”, diz Daniel, envergonhado por ter seu cabelo raspado pelos veteranos da faculdade de publicidade. “Um Goku sem a cabeleira amarela não é a mesma coisa”, lamenta o jovem. Recentemente, duas admiradoras fundaram até um fã-clube para homenagear Daniel. Peixoto explica que isso é comum entre os aficionados. “É o que Freud chamava de transferência. Os fãs admiram um personagem e passam a desejar o cosplayer, aquele que está por trás da fantasia”, diz.
Às vezes, a atração se torna obsessão e o limiar entre a vida real e a ficção se dilui na mente dos otakus. O jornalista francês residente em Tókio Étienne Barral, autor do livro Otaku – os filhos do virtual, destaca a proliferação de colecionadores de miniaturas de heroínas como indício da substituição de namoradas reais por companheiras de 15 centímetros de altura. As bonecas, conhecidas como garage kits, são vendidas desmontadas em caixas de papelão. No Brasil, um kit nacional custa de R$ 25 a R$ 70, enquanto um importado não sai por menos de R$ 100. Cabe ao fã modelista montar, lixar, polir, pintar e envernizar suas heroínas. “A palavra-chave para qualificá-las seria ‘inocência perversa’. A maioria está posta em uma atitude ao mesmo tempo sexy e assustada, arregalando grandes olhos interrogadores, como se estivessem surpresas de encontrar-se em trajes menores diante do olhar de um voyeur autorizado”, escreve Barral. Um de seus entrevistados transforma a boneca em sua amante. “Eu prefiro as bonecas, porque elas são mais puras do que os humanos. Nos desenhos, nos mangás, as garotas são como deveriam ser”, diz.
Musa – Mas o que há de errado em desejar um ser virtual? A guerrilheira Aki Ross, por exemplo, protagonista do filme Final fantasy, em cartaz no Brasil, foi eleita pela revista inglesa Maxim uma das 100 mulheres mais atraentes do planeta no mês passado. A musa foi inteiramente gerada em computador, mas seus admiradores nem ligam. O mineiro Marcus Vini, 40, tornou-se um dos maiores modelistas de garage kits no País. Além de copiar moldes japoneses, ele comercializa bonecos prontos. Prefere construir robôs e seres cibernéticos a graciosas garotas de resina, linha que deixa para o colega de trabalho Celso Ryuji. “Somos dois tarados pelas miniaturas. Minha tara é pela estética, e não pela sensualidade das peças, mas meus clientes costumam buscar modelos que os excitem. As mais vendidas são as personagens em poses sensuais”, diz. A miniatura preferida da coleção pessoal de Vini é Felícia, uma sensual mulher-gata com garras vermelhas e cabelos azuis. Gosto não se discute. Ou se discute?
Glossário |
Mangá – quadrinhos, normalmente em preto-e-branco, publicados em grossas revistas que devem ser lidas da direita para a esquerda. Anime – desenho animado baseado nos sucessos dos quadrinhos japoneses. Gekigá – quadrinhos para adultos, não necessariamente eróticos Hentai – quadrinhos ou animes de conteúdo erótico Cosplay – A arte de se disfarçar de personagens de mangás, animes ou games, assumindo suas roupas e acessórios e imitando fala e gestos. Garage kit – modelismo de miniaturas dos heróis e, principalmente, das heroínas dos quadrinhos. |
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