Por dez anos o rei de Ítaca,
Ulisses teve que enfrentar um oceano repleto de deuses traiçoeiros e
monstros furiosos, tendo sua vontade testada para retornar aos braços de
sua esposa Penélope, que se manteve firme e fiel, fugindo a inúmeros
pretendentes através do artifício de desfazer e refazer uma interminável
tapeçaria. Eventualmente ele retornou para sua esposa que pacientemente
o esperava – não sem antes ter que debelar os urubus que a cercavam. Ao
conjunto dessa saga, chamamos de Odisseia.
Esta semana, a Odisseia do jovem desenhista Mashiro Moritaka nos seus dez anos de jornada em busca de sua Penélope, a dubladora Azuki Miho, chegou ao fim – embora tenha durado menos tempo para nós, leitores (três anos e oito meses). E após ler o último capítulo, senti que deveria fazer uma forcinha e dedicar algumas palavras. É uma obra que me significou bastante a nível pessoal; não poderia deixar seu término passar batido. Como a série está sendo publicada no Brasil pela JBC, eu preferiria permitir que aqueles que estão acompanhando tudo pelas bancas permaneçam descobrindo a história por si só – mas sei que os spoilers serão inevitáveis, então o que vou falar aqui é apenas uma série de considerações, um tanto para fechar a tampa do assunto que abri há muito muito tempo (vejam AQUI), quando a série estava no começo.
Esta semana, a Odisseia do jovem desenhista Mashiro Moritaka nos seus dez anos de jornada em busca de sua Penélope, a dubladora Azuki Miho, chegou ao fim – embora tenha durado menos tempo para nós, leitores (três anos e oito meses). E após ler o último capítulo, senti que deveria fazer uma forcinha e dedicar algumas palavras. É uma obra que me significou bastante a nível pessoal; não poderia deixar seu término passar batido. Como a série está sendo publicada no Brasil pela JBC, eu preferiria permitir que aqueles que estão acompanhando tudo pelas bancas permaneçam descobrindo a história por si só – mas sei que os spoilers serão inevitáveis, então o que vou falar aqui é apenas uma série de considerações, um tanto para fechar a tampa do assunto que abri há muito muito tempo (vejam AQUI), quando a série estava no começo.
Realismo?
É importante entender que Bakuman nunca se propôs a ser exatamente
realista, apesar de partir de um contexto que pode ter dado a entender o
contrário. Existem duas vertentes tipicamente japonesas ao se narrar em
quadrinhos a vida de quem os produz: a primeira delas é focada em obras
memoriográficas mas com uma carga claramente emotiva como o fundamental
Manga Michi, de Fujiko F. Fujio, que mostra a história da dupla Fujio Fujiko, criadores como dupla de clássicos infantis como Doraemon e Obake no Q-Taro (quando ambos se separaram, Hiroshi Fujimoto assumiu o pseudônimo de Fujiko F. Fujio e a outra parte da dupla, Motoo Abiko, passou a assinar Fujiko Fujio (A)).
Sua separação foi amigável – basicamente aconteceu para que se
definisse quem criou o quê, evitando assim que suas famílias brigassem
após a morte de ambos – mas a raiz verdadeira
dela pode ser vista aqui: enquanto a verdadeira paixão de Fujimoto era o
mangá infantil, Abiko começou a se interessar por caminhos diferentes
para sua obra. Manga Michi
expõe justamente como ambos se tornaram amigos na adolescência, expõe o
"choque Shin Takarajima" e a consequente reverência à figura de Osamu Tezuka,
que fez com que muita gente boa de seu tempo decidisse levantar o rabo
da cadeira para fazer quadrinhos e serve de crônica dessa paixão. Porque
só a paixão justifica fazer quadrinhos; de todas as musas, ela é a mais
cruel.
A segunda vertente ao se retratar quadrinhos nos mangás tem sua raiz em outra obra: o inacreditável Otoko no Jouken de Ikki Kajiwara e Noboru Kawasaki – a mesma dupla que produziu o marco zero do shonen moderno – Kyojin no Hoshi (Star of the Giants) – nas páginas da revista semanal para garotos Shonen Magazine da Kodansha (abrindo também a era de ouro da publicação). Só que Otoko no Jouken foi uma das obras que estrearam a Shonen Jump em sua primeiríssima edição, em 2 de Julho de 1968, e que não teve vida longa, durando apenas seis volumes e com os personagens ainda precisando retornar ao mercado após sua série ser abruptamente encerrada. Mas para os fins que nos interessam, Otoko estava longe de ser uma obra que se pretendesse realista, mesmo que ainda funcione como um registro de uma época aonde a profissão era muito mais dura do que hoje – e como declaração de princípios sobre a integridade da criação. Não é à toa que no começo de Bakuman, os personagens prestem tributo à obra resgatando As Cinco Regras do Quadrinhista (que também são as "cinco regras para ser um homem". Guardem isso para a vida, crianças).
A segunda vertente ao se retratar quadrinhos nos mangás tem sua raiz em outra obra: o inacreditável Otoko no Jouken de Ikki Kajiwara e Noboru Kawasaki – a mesma dupla que produziu o marco zero do shonen moderno – Kyojin no Hoshi (Star of the Giants) – nas páginas da revista semanal para garotos Shonen Magazine da Kodansha (abrindo também a era de ouro da publicação). Só que Otoko no Jouken foi uma das obras que estrearam a Shonen Jump em sua primeiríssima edição, em 2 de Julho de 1968, e que não teve vida longa, durando apenas seis volumes e com os personagens ainda precisando retornar ao mercado após sua série ser abruptamente encerrada. Mas para os fins que nos interessam, Otoko estava longe de ser uma obra que se pretendesse realista, mesmo que ainda funcione como um registro de uma época aonde a profissão era muito mais dura do que hoje – e como declaração de princípios sobre a integridade da criação. Não é à toa que no começo de Bakuman, os personagens prestem tributo à obra resgatando As Cinco Regras do Quadrinhista (que também são as "cinco regras para ser um homem". Guardem isso para a vida, crianças).
1. Nunca crie um trabalho superficial; ponha seu sangue na tinta!
2. Nunca viva atrás de popularidade, que é transitória como uma flor. Mergulhe fundo na terra e tenha raízes sólidas.
3. Não importa quanto status você conquiste, você jamais deve ter arrependimentos. Se a escolha for entre a paz e a tempestade, escolha a tempestade.
4. Se você falhar, jamais chore. Estude sua falha e a deixe parir o sucesso.
5. Mesmo se você obedecer a todas essas regras, jamais pense que você, sozinho, está certo. Aprenda com tudo e todos ao seu redor!
O que a torna "inacreditável" é a forma com a qual Otoko é contada:
no entender de Kajiwara, produzir quadrinhos é como uma espécie de
caminho filosófico e iluminador, como acontece em certas artes marciais.
No começo, o protagonista da série trabalha em uma fábrica – e dorme no
chão dela, junto com outros operários. O único entretenimento que as
pessoas tem por ali são os mangás. De repente, um amigo seu perde a
confiança nos mangás – sua única alegria – porque em uma história focada
em um garoto operário, fica claro que o desenhista jamais viu na sua
frente uma máquina como a que o personagem opera. Injuriado, nosso herói
decide ir falar como o desenhista – e quando o encontra, ele está sendo
achacado por um agiota e seus capangas. Ao enfrentar
os bandidos no braço, ele leva uma porrada na cabeça, mas ao menos eles
fogem. Quando o desenhista vai ajudá-lo a se levantar, percebe que o
protagonista desenhou uma máquina industrial na calçada, com o próprio
sangue da ferida, e depois disso, o sujeito o contrata como assistente,
começando assim a sua jornada de iluminação através dos quadrinhos. É,
eu sei. Nem vou falar de como ele encontra seu parceiro de jornada (outro assistente e uma espécie de mestre espiritual), de como os dois após circunstâncias azedas tem que se virar fazendo kami shibai pelas ruas (leia-se, passando a sacolinha)
quando estão sem trabalho ou o ponto aonde ambos são obrigados a criar
uma história que faça rir um membro da yakuza que jamais deu uma
gargalhada – caso contrário terão suas mãos decepadas. Aqueles que
reclamam do não-realismo de Bakuman, deveriam dar uma olhadinha nesse
material.
E isso não chega a ser um problema: apesar de refletir tempos muito mais duros – uma marca registrada de Kajiwara, que adorava mergulhar seus personagens em tragédias – e ser uma história muito mais violenta e barra-pesada, Otoko no Jouken presta de forma fabular um estranho mas sincero tributo à determinação. Que não foi bem entendido à época (o final deixa um gosto claro de obra encerrada antes do tempo), mas se tornou um cult e uma referência para muitos que decidiram sujar seus dedos de nanquim. E provavelmente Ohba foi um deles.
E isso não chega a ser um problema: apesar de refletir tempos muito mais duros – uma marca registrada de Kajiwara, que adorava mergulhar seus personagens em tragédias – e ser uma história muito mais violenta e barra-pesada, Otoko no Jouken presta de forma fabular um estranho mas sincero tributo à determinação. Que não foi bem entendido à época (o final deixa um gosto claro de obra encerrada antes do tempo), mas se tornou um cult e uma referência para muitos que decidiram sujar seus dedos de nanquim. E provavelmente Ohba foi um deles.
Mas aonde está Bakuman em meio a Manga Michi
e essa maluquice? Menos do que um meio do caminho, eu diria que ele
toma ambos como referência de forma não necessariamente excludente. Em
sua primeira parte, é um coming of age,
nos moldes de Manga Michi, mas mesmo assim seu discurso e metodologia
remetem ao folhetinesco de Otoko no Jouken – título cuja tradução
literal, não por acaso, é "O Caminho para se Ser Homem". Podem reparar que o final do capítulo 4 (presente no primeiro volume) já encampa, nas últimas páginas, essa vontade...
Mashiro: "Eu quero me casar com a Azuki, mas não quero ser autor de mangá apenas por isso; eu sinto que quero fazer isso como um homem – COMO UM HOMEM!"
... para citar as regras de ouro do quadrinhista e (e de um homem de verdade) no capítulo seguinte. O que nos leva ao discurso por trás de Bakuman – aquilo que lhe dá sustentação e relevância.
O Apelo à Tradição
Uma coisa que chama a atenção é como Bakuman foi um corpo estranho quando de sua chegada nas páginas da revista Shonen Jump
em Agosto de 2008. E não é por causa do tema fora do comum – volta e
meia a Jump abre a porta para temas mais "diferentes", embora
normalmente eles não vão muito para a frente: basta lembrar de pontos
fora da curva como o obscuro e opressor Amagonzui de George Akiyama (Nem no Mangaupdates há registro dele, para vocês verem como o material foi esquecido, mas dêem uma olhadinha se tiverem curiosidade AQUI) ou o esquisitíssimo Belmondo le Visiteur de Shouei Ishioka. Death Note, da
mesma dupla que produziu Bakuman, foi um desses pontos fora da curva
que periodicamente a editora se permite arriscar, se pensarmos bem – mas
dessa vez deu certo. E curiosamente, a primeira chave de compreensão
dessa curva é justamente a graciosa, discreta e educada Azuki. Compare
ela com as mocinhas da maior parte das séries Jump da mesma época da estreia da série. Para que se tenha uma ideia, além da trinca Naruto / One Piece / Bleach que imperou por anos a fio, tínhamos na ativa títulos como Eyeshield 21, Asklepios, To Love-Ru, Neuro – sem falar de materiais que estão por aí até hoje como Toriko, Nurarihyon no Mago, Gintama e Sket Dance. Podem fazer a comparação. Eu espero.
Já voltaram? Ótimo. O detalhe em Azuki Miho é que ela não é um corpo estranho no espaço...
Já voltaram? Ótimo. O detalhe em Azuki Miho é que ela não é um corpo estranho no espaço...
... e sim um corpo estranho no tempo. Na verdade ela remete às mocinhas polidas e comportadas dos quadrinhos shonen como elas costumavam ser no passado – pense na Miku Ogawa do Wingman de Masakazu Katsura, ou a Chiaki Nanase do Rokudenashi Blues de Masanori Norita. O ponto é que em histórias de aventura, personagens desse tipo tendem a se tornar para lá de secundários (basta lembrar do sumiço de outra Miho dos quadrinhos shonen – lembram de uma certa amiga de infância do Seiya em Cavaleiros do Zodíaco?) e acredito que os leitores passaram a querer ver mais as personagens femininas ao lado de seus heróis (nem que seja para mostrar seus atributos)
ao invés de deixá-las como um local em forma de gente para onde eles às
vão para descansar. Por esse viés, faz sentido a ausência de Azuki Miho
ser... deliberada. Metalinguisticamente, ela é o primeiro sinal de um discurso de retorno à tradição.
Esse elemento não pode ser esquecido ao se falar de Bakuman: um dos elementos mais fascinantes da série é sua visão do que deveria ser uma Jump ideal, uma Jump plural – mas que ainda siga os princípios básicos de uma boa revista para garotos. Muita gente que acompanha a série quer muito ler materiais imaginário como Detective Trap, PCP, Crow e Lontra 11 (de quem tivemos um gostinho em uma história especial). Mas pouca gente repara o quanto essa jump fictícia olha para o passado ou pode ser derivativa. Road Racer Giri é uma série que só pelas suas imagens parece dialogar com o clássico Futari Daka de Kaoru Shintani, clássico motociclístico da Shonen Sunday dos anos oitenta, quando ela era ainda uma força poderosa de mercado. +Natural é um Pokemon turbinado por seus elementos de ficção científica mais claros, negligenciados na série matriz. Detective Trap mira justamente na incapacidade crônica da Jump em criar uma série de detetive bem-sucedida entre seus leitores (até porque esse segmento tem bom respaldo comercial, mas é dominado pelos seus dois concorrentes – basta lembrar de Kindaichi Case Files, na Magazine, e Detective Conan, na Sunday) – volta e meia ela tenta, mas nunca consegue. Lontra 11 é justamente aquele título inovador e subversivo que muita gente sempre quis ver emplacar, mas que acaba quebrando a cara quando a dá a tapa.
Isso tudo não é à toa: Bakuman na verdade é uma declaração de princípios. Muita gente parece se esquecer dos discursos embutidos nos primeiros volumes: eles não são mais repetidos à exaustão, mas estão embutidos contextualmente ao longo da série. Basta lembrar da conversa a seguir proferida logo no terceiro capítulo da série por Mashiro e Takagi.
Esse elemento não pode ser esquecido ao se falar de Bakuman: um dos elementos mais fascinantes da série é sua visão do que deveria ser uma Jump ideal, uma Jump plural – mas que ainda siga os princípios básicos de uma boa revista para garotos. Muita gente que acompanha a série quer muito ler materiais imaginário como Detective Trap, PCP, Crow e Lontra 11 (de quem tivemos um gostinho em uma história especial). Mas pouca gente repara o quanto essa jump fictícia olha para o passado ou pode ser derivativa. Road Racer Giri é uma série que só pelas suas imagens parece dialogar com o clássico Futari Daka de Kaoru Shintani, clássico motociclístico da Shonen Sunday dos anos oitenta, quando ela era ainda uma força poderosa de mercado. +Natural é um Pokemon turbinado por seus elementos de ficção científica mais claros, negligenciados na série matriz. Detective Trap mira justamente na incapacidade crônica da Jump em criar uma série de detetive bem-sucedida entre seus leitores (até porque esse segmento tem bom respaldo comercial, mas é dominado pelos seus dois concorrentes – basta lembrar de Kindaichi Case Files, na Magazine, e Detective Conan, na Sunday) – volta e meia ela tenta, mas nunca consegue. Lontra 11 é justamente aquele título inovador e subversivo que muita gente sempre quis ver emplacar, mas que acaba quebrando a cara quando a dá a tapa.
Isso tudo não é à toa: Bakuman na verdade é uma declaração de princípios. Muita gente parece se esquecer dos discursos embutidos nos primeiros volumes: eles não são mais repetidos à exaustão, mas estão embutidos contextualmente ao longo da série. Basta lembrar da conversa a seguir proferida logo no terceiro capítulo da série por Mashiro e Takagi.
Takagi: Que tipo de mangá você quer fazer?
Mashiro: Eu realmente não pensei sobre isso.
Mashiro: Mas eu gosto de mangás masculinos, mesmo. Não quero nada nem otaku, nem molenga.
Takagi: Bem, eu não quero fazer esse tipo de coisa, também. Sexo, estupro, gravidez, abortos, nada dessas tralhas.
Mashiro: Isso soa como um mangá para meninas ou alguma light novel estúpida… podemos também incluir "doença incurável" a essa lista, é um grande apelo às lágrimas.
Takagi: Ah, certo, foi mal… bem, mangá masculino? Por exemplo, qual? Qual é seu mangá favorito?
Mashiro: Ashita no Joe.
Takagi: Isso é velho…
(Shujin começa a socar o ar enquanto conversam)
Takagi: … mas é realmente famoso. Eu li após ver reprises do anime e isso me fez querer ser um boxeador.
(os dois começam a socar o ar um em direção ao outro, aos risos)
Mashiro: Você era um idiota, não? Mas eu queria ser um também, apesar disso.
Takagi: Aquela era a colaboração entre dois gênios, não? (N. do T.: os gênios de quem eles falam são Ikki Kajiwara e Tetsuya Chiba)
Mashiro: Sim, o escritor tinha cinco séries sendo escritas ao mesmo tempo.
Takagi: (Interrompendo o soco) CINCO? Uau, eu sou muito auto-confiante, mas acho que nem eu poderia dar conta disso tudo! Recentemente eu tenho lido um monte de livros e mangás, gostando ou não, só para ver o que é popular. Acho que foi por isso que mencionei sexo, estupro, gravidez e aborto.
Nesse diálogo, foram mirados justamente as tendências que apenas
apontam para o estreitamento criativo dos mangás atuais. Os personagens
sem iniciativa, o moe ("nada otaku, nada molenga"), adaptações de light novels com soluções dramáticas fáceis (a
falta de motor criativo, tornando o quadrinho mera muleta
divulgacional, não uma fonte de novas ideias – e tenho certeza que ele
estava mirando adaptações como o meloso Um Litro de Lágrimas) – e não podemos esquecer de Hidemitsu Ishizawa,
o personagem que encarna o contexto otaku e moezeiro na acepção de Ohba
e Obata. Suas aparições foram poucas e pontuais, mas disseram tudo
sobre o que significa realmente o modelo de Akihabara nos mangás.
Ishizawa é um desenhista limitado, incapaz de fazer mais do que
rostinhos de meninas bonitinhas que lembram muito o que vemos em
tirinhas 4-Koma (o formato tradicional das tiras japonesas, verticais e de quatro quadros) como K-On! e Lucky Star
– mas há quem caia, nesse golpe porque "é bonitinho", mesmo que ele não
tenha um décimo de qualificação técnica necessária para ser um
quadrinhista de verdade. Menos do que uma pessoa, ele está lá como uma
iconização do quanto é decadente por si só o cenário dos quadrinhos
voltados ao fã hardcore, encarnando como aspectos de caráter tudo o que é
associado ao conteúdo desses materiais. Suas aparições foram pontuais e
em termos práticos não excedem três vezes (descontando menções e aparições mais breves):
um, mostrando que ele conseguiu trabalhar antes do que nossos heróis,
mas isso aconteceu porque as exigências sobre a qualidade do tipo de
material que ele produz são bem menores, logo até ele pode fazer o que
faz, em uma revista obscura voltada ao segmento otaku (e
de quebra reapresentando seu caráter de bravateiro que finge ser mais
relevante e importante do que é – e a história reenfatiza que na prática
ele não tem relevância nenhuma); na outra reaparição, mostrando que
ele, sim, é um pornógrafo e voyeurista desprezível, que toma isso como
base da produção de seus trabalhos – a lição que essa reaparição passa é
que gente como ele não tem nada a ensinar para ninguém. Na reta final,
ele reaparece no horror do estágio terminal de um fã hardcore japonês:
acima do peso, com cabelos compridos, enfiado na internet – estimulando o
culto cerceador à vida de ídolos e cercado de todo o aparato de
bonequinhas de pvc que se espera do tipo.
Novamente eu repito que Ishikawa não deve ser visto como um ser humano, mas como um cenário contextual iconizado em forma humana. O detalhe é que o moe não é o único manancial de saúvas que come pouco a pouco – e agora já está causando fraturas expostas – a carne do próprio mangá como indústria e como potência criativa. Estamos falando aqui de todas as histórias movidas não por roteiros consistentes, mas pela pontualidade de fetiches. Nesse sentido, não há diferença entre a Comic High, lar de produtos repletos de histórias protagonizadas por meninas com cara de boneca saída de jogo simulador de namoro por computador, e a GFantasy, lar de coisas como Kuroshitsuji, ou com títulos como Katekyo Hitman Reborn e Príncipe do Tênis (na própria Jump!), ou os títulos da Clamp, ou as séries com garotos com orelhas de gatinho, ou o diabo a quatro. Ninguém quer saber de roteiro ao ver esse tipo de material. Querem sim, encontrar meninas bonitinhas fazendo coisinhas adoráveis, ou dois marmanjos à beira de trocar germes, ou meninas de óculos, ou vestidas de empregadinha, ou trajadas com orelhinha de gatinho também... enfim, não adianta o pessoal que idolatra esse tipo de coisa vir aqui reclamar: é a pontualidade do fetiche e das rotinas obrigatórias que os expõem que vem matando os mangás – e mais ainda os animes – tornando-os pouco a pouco dispensáveis como força criativa.
Na verdade, a versão animada de Bakuman perde pontos porque se olharmos bem, esses aspectos de discurso são suavizados: Ishizawa, apenas para que se dê um exemplo, é apresentado apenas como um desenhista que se passa por muito disfarçando erros crassos (algo questionável, mas independente de seu alinhamento como artista) dissociando sua arrogância de seu perfil; ele comete o mesmo ato o levou nos quadrinhos a levar um murro de Takagi, mas no final desse episódio o roteiro o faz sair com alguma dignidade da situação, com um velado pedido de desculpas e apresentação de respeitos. Quando eles descobrem que ele está publicando em uma revista, no original, os protagonistas olham o conteúdo naquilo que tem de questionável, mas na versão animada eles dão uma certa respeitabilidade a ele quando usam o fato dele publicar como mais um motivo para se esforçarem. Ao nivelarem Ishizawa aos protagonistas, mesmo que minimamente, tivemos uma punhalada ideológica na série.
Mas por que isso? Uma olhada no currículo da J. C. Staff – estúdio que produz o Bakuman animado – mostra bem o motivo: eles foram os responsáveis por materiais como Tantei Opera Milky Holmes, Toaru Kagaku no Railgun, Shakugan no Shana, Toradora... Com esse perfil mais voltado ao fã e mais distante da postura de massas que tornou os mangás aquilo que são, não foi a toa que ainda no primeiro volume, os dois protagonistas retornaram a Ikki Kajiwara e ao seu seminal Otoko no Jouken. E também não foi à toa que os cinco mandamentos do quadrinhista – e do homem – foram removidos da versão animada da série. A J. C. Staff também tem telhado de vidro nessa história. É parte da doença, não da cura.
Novamente eu repito que Ishikawa não deve ser visto como um ser humano, mas como um cenário contextual iconizado em forma humana. O detalhe é que o moe não é o único manancial de saúvas que come pouco a pouco – e agora já está causando fraturas expostas – a carne do próprio mangá como indústria e como potência criativa. Estamos falando aqui de todas as histórias movidas não por roteiros consistentes, mas pela pontualidade de fetiches. Nesse sentido, não há diferença entre a Comic High, lar de produtos repletos de histórias protagonizadas por meninas com cara de boneca saída de jogo simulador de namoro por computador, e a GFantasy, lar de coisas como Kuroshitsuji, ou com títulos como Katekyo Hitman Reborn e Príncipe do Tênis (na própria Jump!), ou os títulos da Clamp, ou as séries com garotos com orelhas de gatinho, ou o diabo a quatro. Ninguém quer saber de roteiro ao ver esse tipo de material. Querem sim, encontrar meninas bonitinhas fazendo coisinhas adoráveis, ou dois marmanjos à beira de trocar germes, ou meninas de óculos, ou vestidas de empregadinha, ou trajadas com orelhinha de gatinho também... enfim, não adianta o pessoal que idolatra esse tipo de coisa vir aqui reclamar: é a pontualidade do fetiche e das rotinas obrigatórias que os expõem que vem matando os mangás – e mais ainda os animes – tornando-os pouco a pouco dispensáveis como força criativa.
Na verdade, a versão animada de Bakuman perde pontos porque se olharmos bem, esses aspectos de discurso são suavizados: Ishizawa, apenas para que se dê um exemplo, é apresentado apenas como um desenhista que se passa por muito disfarçando erros crassos (algo questionável, mas independente de seu alinhamento como artista) dissociando sua arrogância de seu perfil; ele comete o mesmo ato o levou nos quadrinhos a levar um murro de Takagi, mas no final desse episódio o roteiro o faz sair com alguma dignidade da situação, com um velado pedido de desculpas e apresentação de respeitos. Quando eles descobrem que ele está publicando em uma revista, no original, os protagonistas olham o conteúdo naquilo que tem de questionável, mas na versão animada eles dão uma certa respeitabilidade a ele quando usam o fato dele publicar como mais um motivo para se esforçarem. Ao nivelarem Ishizawa aos protagonistas, mesmo que minimamente, tivemos uma punhalada ideológica na série.
Mas por que isso? Uma olhada no currículo da J. C. Staff – estúdio que produz o Bakuman animado – mostra bem o motivo: eles foram os responsáveis por materiais como Tantei Opera Milky Holmes, Toaru Kagaku no Railgun, Shakugan no Shana, Toradora... Com esse perfil mais voltado ao fã e mais distante da postura de massas que tornou os mangás aquilo que são, não foi a toa que ainda no primeiro volume, os dois protagonistas retornaram a Ikki Kajiwara e ao seu seminal Otoko no Jouken. E também não foi à toa que os cinco mandamentos do quadrinhista – e do homem – foram removidos da versão animada da série. A J. C. Staff também tem telhado de vidro nessa história. É parte da doença, não da cura.
Parece estranho ver isso sendo falado de uma série que mostra os
bastidores da criação dos mangás comerciais como Bakuman. Mas lembrem
que na virada dos anos sessenta pro setenta – a época de Kajiwara e
Kawasaki, que também podia contar com um Fujiko Fujio – o mangá viveu
talvez seu maior momento criativo conjunto. Foi a rebelião contra as
normas estabelecidas por Osamu Tezuka
e seus seguidores, o surgimento do segmento seinen, a raiz das mudanças
que seriam tomadas na década seguinte pelas autoras dos quadrinhos
femininos, e até mesmo o tempo de pontos altos na carreira de muita
gente boa que já estava na ativa antes dessas mudanças tomarem curso (Jinzou Ningen Kikaider, de Shotaro Ishinomori – veja AQUI – era dessa época). Era um período aonde boas ideias podiam fazer diferença e tinham retorno comercial. O mangá estava instalado
no coração do seu povo e histórias marcantes eram feitas em profusão
por uma geração talentosa como nunca. O que a série prega é justamente a
necessidade de novas e boas idéias – e por isso a Jump fictícia da
série parece ser tão mais atraente do que a real de nossos dias. Na
verdade, parece ser mais atraente do que a maior parte das publicações shonen nos dias de hoje.
Pelo Futuro dos Mangás
Bakuman, apesar de sua estrutura interna de mangá de esportes –
porque na prática é essa a condição em que as tabelas de popularidade da
revista colocam os autores – parece ser pensado não para estimular o
surgimento de novos autores para a Shonen Jump (porque na posição de revista nº1 do mercado, eles sempre virão), ao contrário do que parece; e sim para estimular uma geração de futuros novos criadores a repensar
o que eles mesmos irão querer para seus mangás no futuro. Alguns temas
levantados ao longo da obra sinalizam para isso, como a influência de
uma obra sobre seus leitores ou a dura divisão entre ser autoral e ser
comercial – um dos meus momentos favoritos na série é quando dois
assistentes, um totalmente voltado ao comercial e outro totalmente
voltado ao autoral, discutem ferozmente e Mashiro corta a briga ao
colocar sua posição: ser comercial e saber falar com o grande público é
importante em nome da sobrevivência, mas é preciso manter a dignidade do conteúdo para não envergonhar o mangá como linguagem artística. Talvez uma das declarações mais sensatas que eu já li sobre a questão em qualquer lugar.
É uma discussão que surge num momento periclitante para a mídia dos mangás e animes: a sociedade japonesa vive sua maior crise em muito tempo. A pergunta que surge é se a reação que Bakuman parece querer estimular acontecerá no timing certo para que possa ser efetiva: no Japão, o gradativo alienamento da mídia em relação à massa está gerando um caminho cujo retorno é possível, mas difícil – e quanto mais longo for esse período de afastamento, muito mais difícil esse retorno vai ser.
Bakuman parte deixando pontas soltas e muitos, muitos, temas para discussão a ser apreciados e levantados para os fãs de quadrinhos. Vale, a despeito dos resmungos de umas ou outras pessoas – e eu nem quis tocar no suposto machismo da série, que é manifestado pelos personagens aos quatorze anos e é facilmente desmontável a medida em que eles envelhecem. Agora é esperar a próxima obra de Ohba e Obata – eles provaram que podem fazer algo diferente e ser bem-sucedidos. Pessoalmente, achei Bakuman superior a Death Note – e superar a obra que deu fama a um autor é sempre um grande desafio. No final, senti que esses anos, como leitor, ao lado de Mashiro, Takagi, Miyoshi, Hattori e companhia, valeram a pena – apesar dos altos e baixos.
Dez anos após o início de sua jornada, Ulisses reencontrou a Penélope que se guardou para ele (com direito até aos seus "pretendentes" se estabelecendo entre os dois no final – o que seriam aqueles fãs desmedidos regulando a vida de uma moça querendo-a para eles, incapaz de uma vida pessoal?).
Foi uma Odisseia que deixará saudades.
É uma discussão que surge num momento periclitante para a mídia dos mangás e animes: a sociedade japonesa vive sua maior crise em muito tempo. A pergunta que surge é se a reação que Bakuman parece querer estimular acontecerá no timing certo para que possa ser efetiva: no Japão, o gradativo alienamento da mídia em relação à massa está gerando um caminho cujo retorno é possível, mas difícil – e quanto mais longo for esse período de afastamento, muito mais difícil esse retorno vai ser.
Bakuman parte deixando pontas soltas e muitos, muitos, temas para discussão a ser apreciados e levantados para os fãs de quadrinhos. Vale, a despeito dos resmungos de umas ou outras pessoas – e eu nem quis tocar no suposto machismo da série, que é manifestado pelos personagens aos quatorze anos e é facilmente desmontável a medida em que eles envelhecem. Agora é esperar a próxima obra de Ohba e Obata – eles provaram que podem fazer algo diferente e ser bem-sucedidos. Pessoalmente, achei Bakuman superior a Death Note – e superar a obra que deu fama a um autor é sempre um grande desafio. No final, senti que esses anos, como leitor, ao lado de Mashiro, Takagi, Miyoshi, Hattori e companhia, valeram a pena – apesar dos altos e baixos.
Dez anos após o início de sua jornada, Ulisses reencontrou a Penélope que se guardou para ele (com direito até aos seus "pretendentes" se estabelecendo entre os dois no final – o que seriam aqueles fãs desmedidos regulando a vida de uma moça querendo-a para eles, incapaz de uma vida pessoal?).
Foi uma Odisseia que deixará saudades.
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