quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Homem-Aranha, por Ryoichi Ikegami e Kazumasa Hirai!!


Spider-Man
"Tudo aconteceu tão subitamente...
Eu fui mordido por uma aranha radioativa e ganhei habilidades proporcionais à ela.
Desde então eu me tornei um super-homem. Eu posso destruir qualquer coisa que eu queira, até mesmo a Torre de Tóquio!
Ninguém pode me vencer, eu sou o homem mais forte do mundo!
Mas para mim, nada disso tem significado.
Eu não sei como expressar o quanto eu sou sozinho...
Não. Eles jamais podem saber.
Eu conheço tantas pessoas...
...mas ninguém me conhece de verdade."
Esse monólogo melancólico encerra um dos melhores arcos históricos de um material que tinha tudo para dar errado – e a bem da verdade, comercialmente não chegou a dar tão certo assim: O Homem-Aranha japonês, de Ryoichi Ikegami, publicado no começo dos anos setenta. Publicada em um momento decisivo do mercado japonês, ela se tornou um polaróide das transformações que definiriam o mangá para os nossos tempos – e também gerou um bocado de dor de cabeça à Marvel quando de sua publicação em território americano. Mas também é um material mais interessante do que a versão editada made in USA deu a entender. Não vou negar que esta matéria não é novidade e está sendo resgatada por ocasião do novo filme do Homem-Aranha, mas ela sofreu alguns upgrades a partir de sua publicação original, incluindo novas informações e corrigindo alguns buracos (agradeço ao Felipe Onodera por algumas retificações e informações novas que me faltavam). Não poderia haver melhor oportunidade para tirá-la da gaveta.
Em todo caso, não há muito mistério nas origens dessa série: Tudo começou com uma rápida publicação da fase clássica do Homem-Aranha, por Stan Lee e Steve Ditko, em território japonês. A Marvel vinha crescendo ao redor do mundo e seria tolice não tentar morder um naco no então ascendente mercado japonês de quadrinhos. Os resultados, entretanto, não foram nada auspiciosos.
Ruídos de Comunicação
Homem-AranhaNo meio de inúmeros materiais mais populares, a publicação do personagem passou batida. Num ato de bom-senso, a primeira reação do representante da Marvel no Japão, Gene Pelc, foi a de procurar, ao lado da equipe da Shueisha – que publicou o material em terras japonesas – entender o porquê de um produto bem-sucedido em todos os lugares por onde passou não ter dado os mesmos resultados num mercado jovem, vibrante e que não parava de crescer.
A resposta foi, por incrível que pareça, o confronto não foi entre conteúdo e leitor, mas entre leitor e narrativa. Nas palavras de um leitor japonês, eles gostavam do personagem e se identificavam com os seus dramas regulares, mas ele era muito cheio de texto por balão, portanto tomava tempo demais e exigia muito esforço de leitura – sendo portanto pouco indicado para ler na banheira ou entre um ponto e outro do metrô. De acordo com Pelc, "Um artista de quadrinhos japonês uma vez me disse que se ele tomasse uma história em quadrinhos original do Homem-Aranha, de 17 páginas, ele poderia fazer cem páginas a partir do material." Aqui nos damos conta de uma verdade que tende a ser minimizada por muitos: Mangá, menos do que desenho, é narrativa. O comic book americano, também. A forma de narrar é delimitada por sua forma de publicação e isso faz diferença: Reflete a forma do leitor lidar com o tempo de leitura. O mangá é rápido, ágil, digestivo e predominantemente visual – consequência justamente da falta de tempo crônica do leitor japonês, sobrecarregado por trabalho e/ou estudo. 96 páginas de um quadrinho italiano como Tex ou Mágico Vento levam muito mais tempo para serem lidas do que 192 páginas típicas de um tanko-hon de mangá. Podem ir tirar a prova. Eu espero.
Homem-AranhaEm suma, o problema não era o personagem – era a forma com que ele era publicado em um mercado que já havia definido inicialmente a sua forma. E devido ao vulto que este mercado estava tomando, valia a pena tomar uma decisão de risco: adaptar o produto à ele.
Em Terras Japonesas
O autor escolhido para lidar com o personagem foi Ryoichi Ikegami (Crying Freeman, Mai – a Garota Sentisitiva, Sanctuary, Samurai Crusader, Strain). Aparentemente, ele era a pessoa certa para lidar com o Homem-Aranha – e paradoxalmente, isso se deu pelo mesmo motivo que fazia com que sua carreira não decolasse devidamente. Ikegami foi assistente de Shigeru Mizuki, criador do bem-sucedido Gegege no Kitaro, que marcou época nas páginas da principal publicação da Kodansha, a Shonen Magazine semanal (na época, a mais vendida do Japão, ocupando o posto e o status que hoje pertencem à Shonen Jump), e que naquele momento havia sido concluído. Ikegami, de origem mais humilde do que boa parte dos artistas que fizeram seu nome na época, parecia ter um complexo de inferioridade em relação à intelectualidade que o cercava, convivendo com autores como Yohsiharu Tsuge (autor do onírico e difícil "A Cerimônia do Parafuso"). Sendo apresentado a autores como Goethe e Sartre, o resultado foi... desastroso. Aquela geração de criadores de mangá, em plena efervescência do final dos anos sessenta, tinha bagagem o suficiente para equilibrar as necessidades do quadrinho comercial com a carga cultural que carregavam. Ikegami não a tinha, as angústias existenciais da grande literatura encheram sua cabeça e a soma dos fatores gerou um autor que sempre acabava criando personagens imersos em dúvidas sobre si mesmos para um mercado habituado a personagens fortes e diretos.
Só que o Homem-Aranha como o conhecemos É um personagem imerso em dúvidas sobre si mesmo, que se questiona o tempo todo sobre os próprios atos. Nas próprias palavras de Ikegami sobre o seu começo de carreira:
"Por exemplo, eu não conseguia me decidir sobre o que fazer em uma cena onde o herói deveria salvar uma criança. Uma parte de mim sussurrou: 'Como ele pode estar tão seguro? Ele é mesmo capaz de tais heroísmos? É apenas um homem comum!' Eu sempre refletia sobre meu próprio caráter e o lado sombrio do 'herói' que estava criando. Consequentemente, todos os meus personagens tenderam a ser indecisos e hesitantes. Alguns dos meus editores disseram que eu precisava de heróis fortes para ser popular. Às vezes, tentava imitar as histórias de outros artistas, mas também não deu certo."
Nesse contexto, Ikegami aparentemente era o que o personagem precisava. E assim, o nosso Cabeça-de-Teia iniciou sua saga de oito volumes (as reimpressões posteriores tendem a publicar o material de forma mais concentrada, em cinco edições) na irmã mensal da toda-poderosa Shonen Magazine de então – a Monthly Shonen Magazine.
Mudança de Comportamento
Para explicar algumas coisas sobre o andamento da série, vamos ter que fazer uma pequena retrospectiva do panorama dos mangás naqueles anos. E aquele talvez fosse o momento crucial de ruptura entre o mangá como ele era e o mangá como ele viria a ser nos dias de hoje. Já falamos em um artigo anteiror sobre como os quadrinhos conseguiram conquistar os adultos – veja AQUI – e Homem-Aranhaobservando com atenção, dá para se perceber que o que aconteceu, na verdade, foi um salto comportamental: A geração nascida após 1950 acompanhou todos os passos da evolução dos mangás com uma sucessão de materiais que serviram como abre-alas. Surgiu aquilo que viríamos a chamar de Seinen – os quadrinhos para jovens adultos, com temas em tese mais maduros, e eles conquistariam seu espaço definitivo nos anos sessenta, como parte da progressão que tornou os mangás o que eles são hoje em dia no Japão. As primeiras revistas Seinen começavam a conquistar os leitores que abandonavam as revistas shonen, consumidas por adolescentes.
Só que as editorias das grandes revistas de shonen – o popular material "para garotos" – não enxergaram isso como uma progressão natural. Enxergaram de outra forma: a fatia mais velha de seus leitores estaria, na verdade, trocando-os pela concorrência. E com isso eles trouxeram os traços mais realistas do seinen e até mesmo parte de sua temática para as revistas shonen. O objetivo era manter os leitores mais velhos – e as revistas seinen, em reação, fizeram o mesmo (absorvendo elementos estéticos dos mangás para um público mais jovem), em um intercâmbio que criaria o traço dos mangás de hoje; também é importante pontuar que essa reação deixou o público mais jovem um pouco de lado e uma então pequena editora da ocasião chamada Shueisha se valeria desse descuido para crescer à sua margem, tornando uma obscura antologia chamada Shonen Jump na maior e mais poderosa revista do mercado japonês. Mas o que interessa, para ESTA matéria, é que na busca pela manutenção dos leitores na ponta final da faixa etária atingida por essas revistas, foram cometidos alguns excessos – o que explicaria até, a longo prazo, a migração de parte do público mais jovem para revistas que se mantivessem fiel a essa faixa de leitores.
Testando os Limites do Público
Homem-AranhaAssim, uma antologia com um público alvo muito jovem, como a Shonen Gaho, marcou a estréia do autor de horror Hideshi Hino durante o ano de 1969, com uma história onde um homem infectado por uma doença misteriosa literalmente apodrece, apesar dessa mesma história ter sido recusada num primeiro momento (a editora contatou o autor pouco tempo após sua recusa, o que sugere que a tentativa de atingir a fatia mais velha dentro de uma revista com leitores mais jovens deve ter pesado na hora de reconsiderar a publicação); Devilman – de quem já falamos AQUI – iniciou sua carreira na Shonen Magazine em 1972, com uma carga de violência impensada – e o mesmo autor, Go Nagai, radicalizaria ainda mais no ano seguinte e na mesma revista, com a série Violence Jack, que hoje estaria longe até de muitas revistas seinens, apresentando um cardápio de sexo e violência que faz Berserk parecer um inocente episódio de Naruto. O final dos anos sessenta e o início dos anos setenta pegariam o shonen ao mesmo tempo em crescimento contínuo e em uma encruzilhada que culminaria no ano de 1975 com a transformação da Jump na nº1 do mercado – algo que provavelmente representou um choque de realidade. Alguns fãs dessa época em particular dos shonen chegam a ver isso como algum tipo de "desamadurecimento" do público médio em relação ao nosso tempo, fazendo títulos que antes eram vistos como shonen serem vistos como seinen; mas na verdade isso poderia ser melhor visto como um ajuste mais claro de classificação. Quando Bastard começou a pôr as unhas de fora em plena Shonen Jump, houve o bom-senso de levá-lo, mesmo sendo um produto bem-sucedido, para uma revista para um público mais velho.
E o que o Homem-Aranha tem a ver com isso? Simplesmente ele surgiu justamente nesse verdadeiro fogo cruzado que foi o cenário dos mangás do começo dos anos setenta a pouco mais do que sua metade. E ironicamente anteciparia conceitos e tendências vistas nos quadrinhos de super-heróis dos anos oitenta, mas também acabaria indo para caminhos sombrios demais para o que dela era esperado. Só que a bem da verdade, essa não parecia ser a intenção do material.
Spider-Man

Começando com o Pé Esquerdo
O início de "Homem-Aranha", a bem da verdade, foi mais simples e juvenil – e muito calcado no material de Lee e Ditko – mas apresentou alguns eventos fundamentais para a construção do tom sombrio que viria a aparecer. O protagonista Yu Komori é apresentado como um adolescente deslocado, inicialmente sem amigos, que provavelmente se afunda nos estudos mais como uma forma de compensar o vazio da sua vida. Diferentemente de Peter Parker, sua nerdice é fonte de ironia, mas não de perseguição. Vive com a tia Mei e não há nenhum sinal de haver um "Tio Ben". De uma forma um tanto infantil, após o mesmo acidente com a aranha radioativa que Parker sofreu, ele se torna o Homem-Aranha sem motivos – mas o processo é apresentado de forma sintética, e é impossível não lembrar da ordem dos mesmos eventos no primeiro filme de Sam Raimi com o personagem. Há motivos para tanto: na época, o tradutor Kosei Ono (que em algumas fontes é Homem-Aranhaerroneamente creditado como roteirista) se deu ao trabalho de verter para o japonês os quadrinhos originais de Lee e Ditko para que Ikegami os redesenhasse. De um lado, Ikegami se sentia pouco a vontade em mergulhar em referências para desenhar Nova York; de outro, haviam problemas editoriais com a figura do personagem J. Jonah Jameson – eram tempos bicudos, onde as forças governamentais invadiram o estúdio do desenhista Tetsuya Chiba para procurar material de propaganda de esquerda, por conta do sucesso de Ashita no Joe – de quem já falamos AQUI – entre os grupos estudantis de seu tempo. A ideia de que um jornal pudesse mentir e criar campanhas injustas de difamação era considerada perigosa para aquele período (nãããão, essas coisas nunca aconteceriam no Bras… digo, no Japão). A ideia de criar um Homem-Aranha japonês surgiu justamente para contornar esses obstáculos.
Mesmo assim, o começo foi bastante fiel – o que não impediu o material de já apresentar algumas das características dramáticas que o definiriam. Na sua primeira história, após conhecer uma menina chamada Rumiko Shiraishi (ou melhor, "Rumi"), que veio para Tóquio em busca de seu irmão desaparecido, ele procura ajudá-la a achar seu irmão – o único que pode ajudar a pagar as contas da hospitalização de sua mãe. Como o irmão da moça é difícil de encontrar, e sua trajetória de empregos não o leva a nada – concluindo com um roubo do caixa do último lugar por onde trabalhou, um bar – Komori decide usar a recém-inventada identidade de Homem-Aranha para, com a recompensa pela captura um misterioso ladrão de bancos chamado Electro, ajudar a mãe hospitalizada da menina. Só que tudo acaba em tragédia: ainda inexperiente com o uso de seus poderes e sem controle da própria força, Komori desfere um único murro que ceifa a vida de Electro – e na verdade ele é o irmão de Rumi (vocês tinham alguma dúvida?). Não nos soa estranho Homem-Aranhaquando lembramos da namorada de Parker, Gwen Stacy, e a morte do seu pai, o Capitão de polícia Stacy (quando o Capitão Stacy morre, ela passa a odiar o Homem-Aranha), mas as conotações são até mais graves: Agora a moça, com o irmão morto e a mãe hospitalizada, não tem mais com quem contar no mundo – e o ódio da moça pelo Aranha é o menor dos motivos para Yu perder o sono à noite pelo destino de Rumi.
Olhando com atenção, este é o primeiro sinal de uma abordagem que aproxima a série das abordagens mais realistas de obras vindouras do gênero como Miracleman, de Alan Moore – podemos comparar com a cena onde o herói britânico tenta salvar uma criança e acaba quebrando suas costelas. Mas não havia a intenção de desconstrução aqui: se observarmos bem, não é nada muito diferente nem dos dramas dos mangás e animes da época, nem do que o próprio Stan Lee fazia com o aranha nos Estados Unidos – apenas o tom de tragédia seria muito, mas muito mais exacerbado, e com certeza o mercado americano, após os baques que levaram ao surgimento do famigerado Código de Ética nos anos cinquenta, não estava ainda preparado para a alta voltagem de temas como prostituição, neuroses urbanas, alienação social e comportamento de massas. Só a introdução de Drogas como temática – mais ou menos na mesma época, no próprio título original do Aranha – causou um rebu imenso, para que se tenha uma ideia.
Além disso, Ryoichi Ikegami era um artista inexperiente – ainda distante do cuidadoso e detalhista autor de Sanctuary, Crying Freeman e Mai, a Garota Sensitiva. Sua arte tem uma sensível melhora ao longo da série e o levaria para o caminho do Gekiga (anos depois, em 1973, sob o roteiro de Kazuo Koike – o mesmo de Lobo Solitário – ele se estabeleceria com a obra Auieo Boy para a revista Gekiga Gendai da Kodansha), mas admitamos – o começo foi terrível. A tentativa de se adaptar com fidelidade o universo do Aranha, qualitativamente, não estava dando tão certo assim.
Homem-Aranha
Não Há Maior Inimigo Do Que a Vida
O Homem-Aranha levou mais algum tempo tentando ser uma versão da sua contraparte original. Confrontos com o Lagarto e o Canguru, vilões originais da Marvel, e como se fosse a cereja do bolo da fase "Peter Parker" de Yu Komori, ao final do confronto com esse último, ele desiste de ser o Homem-Aranha, atirando seu uniforme no rio. No mundo dos comics, a quantidades de vezes em que Parker desistiu de ser o aranha já virou piada até mesmo dentro da própria Marvel...
O tubo de ensaio para a virada viria a seguir: com uma sequência narrativa arrojada e espetacular mesmo hoje em dia (e uma arte menos caricata do que a apresentada nos números anteriores, o que se encaixou melhor com a história), somos apresentados a um cantor popular que é brutalmente atacado em frente as câmeras... pelo Homem-Aranha. O cabeça-de-teia começa a atacar as mulheres na rua e Komori, preocupado principalmente com Rumi, começa a digerir muito Homem-Aranhamal a situação. Psicólogos e especialistas começam a discutir em frente às câmeras sobre o fenômeno do super-herói, declarando que sem inimigos para combater, um super-herói pode começar a se voltar contra outras pessoas. Isso, dezesseis anos antes de O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller!
Logo, aparece Mysterio – se apresentando como um novo herói para Tóquio, disposto a trazer o Homem-Aranha à justiça. Quem conhece o personagem original já percebeu que na verdade ele se passou pelo Aranha para fazer sua imagem pública decolar. No entanto, a batalha final entre ambos, que acaba por inocentar o Aranha, é relativamente rápida e anticlimática: o que importa, e que fez desse arco-histórico o primeiro momento qualitativamente bom da série, é justamente a abordagem psicológica da trama, onde Komori é finalmente definido como um personagem angustiado, devorado internamente pelas pressões de ser o Aranha, em um grau muito mais dramático do que o vivido por Parker. Nos Estados Unidos, a sequência foi publicada em seis edições – e dessa forma podemos observar que virtualmente, o Aranha aparece apenas duas vezes. A história, efetivamente, pertence à Komori, à sua vida familiar, e ao drama que cai sobre sua vida, com intenso desenvolvimento psicológico. Ou seja, custou um pouco, mas a ficha caiu: o verdadeiro protagonista no original era Parker, não o Aranha – ele é o que define Parker. E para que a série entrasse finalmente nos eixos, era preciso fazer a série pertencer a Yu, e não ao... fantasma de Peter Parker, que assombrava os autores e não lhes permitia decolar.
O que se seguiu foi uma história menor em extensão, mas que a partir dos elementos que se manifestaram pela primeira vez no arco anterior, entrou em um novo caminho e declarou independência da versão original dos personagens, subindo de nível como história e alcançando identidade própria.
Há um Mundo Frio lá Fora...
Homem-AranhaDe acordo com as palavras de C. B. Cebulski, membro do staff editorial da Marvel, "Coordenar a versão americana da série foi meu primeiro trabalho para a editora naqueles tempos. A cena de estupro, e algumas das cenas com drogas, causaram muita dor de cabeça, pelo que eu lembro."
A "Cena do Estupro" em questão – pesadamente censurada, nos Estados Unidos – é o ponto de virada da série. Rumi desapareceu, e Komori pensa tê-la encontrado sendo atacada por um bando de estupradores. Não é Rumi, mas não faz diferença: ele enxotou os delinquentes, mas reconheceu um deles como o capitão do time de Kendô da escola. Para piorar, a vítima o confunde com um dos agressores. Na escola, Komori é considerado o agressor e passa a sofrer o silêncio de gelo (o isolamento total de uma pessoa, algo comum em escolas japonesas), e seu plano é juntar-se ao time de kendô do colégio... e espancar diariamente o capitão do time e seus cúmplices até que eles peçam arrego e confessem. No meio do caminho, Komori acaba descobrindo que Rumi está trabalhando como garçonete numa boate barra pesada – e futuramente, isso terá consequências funestas...
Material de difícil digestão, mas publicado sem problemas em uma revista shonen naqueles anos onde os limites estavam sendo testados. Para a Marvel, entretanto, a série representou mais do que eles poderiam lidar naquele momento. Para todos os efeitos, o peso do Aranha na vida do angustiado Komori dava sinais de que ele poderia enlouquecer e perder o controle sobre si mesmo (o que nos faz pensar que talvez o melhor personagem da Marvel para Ikegami trabalhar não fosse o Homem-Aranha, mas o Hulk; a dualidade do homem que tenta evitar que o monstro interior insurja-se dentro de si é a pedra fundamental das histórias do gigante verde). E ao longo de seu caminho, ele iria encontrar o pior do que o ser humano pode oferecer.
Homem-Aranha
O mundo do Aranha japonês passa a ser um mundo mais e mais negro e cinzento, repleto de mesquinharia, impiedade, egoísmo, hipocrisia e desolação. Ninguém se importa realmente com os outros, e aqueles que o fazem, como Komori, acabam trazendo mais miséria para sua vida (como dizem os americanos, "Cada boa ação merece uma punição"). E curiosamente, quanto mais árido se torna o universo da série, melhor ela se tornou também. É impossível de não se lembrar do trabalho de outros autores da época, como Yoshihiro Tatsumi, que serviu de cronista para o mundo impiedoso do Japão do pós-guerra. O novo tom foi impulsionado pela entrada de um novo roteirista na equipe, trazido pelo próprio Ikegami: Kazumasa Hirai, cujo currículo inclui séries como o Oitavo Homem, Genma Taisen e Wolf Guy (respectivamente com artes de gente boa como Jiro Kuwata, Shotaro Ishinomori e Hisashi Sakaguchi). Cá entre nós, eu não me pergunto se os dois arcos anteriores já não foram feitos com sua colaboração não-oficial, já que apenas estabelecem o tom Homem-Aranhaque seria definido de vez a partir de sua entrada, mais realista e impiedoso – se refletindo também na arte de Ikegami, que passaria a se encaminhar para o tom anatômico que conhecemos hoje. É bom lembrar que apesar de sua presença nos quadrinhos, Hirai era prioritariamente um romancista e ele não parecia tão disposto a queimar a mufa atrás de novas histórias para o personagem: muitas das tramas do autor eram adaptadas de velhos contos seus. "A Mulher do Inverno" é baseada em um conto chamado "A Mulher que Semeia a Morte", "Estranhos" veio do conto "Não há estranhos ao Lírio" e duas histórias em particular ("A Sombra do Homem-Aranha" e "A Mulher que Criava o Tigre") vieram de tramas de sua série Wolf Guy, devidamente recicladas e disfarçadas.
Claro, quem acompanhou a partir da versão americana (como eu) não viu boa parte desse material. As vendagens nos Estados Unidos não estavam boas, e a ordem de certas histórias foi alterada e comprometida. A estreia de Hirai, "What's my Destination", jamais foi publicada em inglês; ao drama psicológico "O verão da insanidade" – o último escrito por Ikegami – se seguiu um dos melhores arcos na edição americana, "A Mulher do Inverno"... só que com isso se pularam histórias importantes até para a compreensão de eventos marcantes (como veremos mais adiante). E após este material, a Marvel publicou o melhor arco da série – "A Sombra do Homem-Aranha", uma história que antecedeu em décadas o personagem Venom em termos conceituais: um "Anti-Aranha", que serve para mostrar o que alguém diferente e sem a mesma base de caráter poderia fazer com os mesmos poderes. E, como que para confirmar os rumos que a série vinha tomando, totalmente sombria e desesperançosa – com uma qualidade que eclipsava o começo desastroso que a série teve.
Homem-Aranha
A Sombra do Aranha
Yu Komori comete o erro de doar sangue para Mitsuo Kitano, uma vítima de um grande acidente de trem que precisava de uma transfusão de sangue AB (Claro que Ikegami deveria ter feito um pouco mais de pesquisa; o sangue tipo AB é o mais raro, mas é o receptor universal; mas como sem isso a história não aconteceria, vamos em frente). E aí vem a bomba: descobrimos que Rumi morreu, em uma das histórias puladas pela Marvel (Demon Mania), quando ele encontra a irmã de Mitsuo, Yukiko (que lhe lembra muito a falecida). Eventos posteriores da história permitem que se façam outras inferências – até mais cruéis – sobre o destino triste da moça. Curiosamente, isso lembra o que o escritor J. M. Straczinsky fez com a imagem de Gwen Stacy retroativamente, só que no Aranha de Ikegami e Hirai, isso não apenas é coerente como faz sentido absoluto na sua descrição de um mundo corruptor e sem esperanças. Mas vamos voltar à história.
Homem-AranhaMitsuo Kitano se revela um canalha, explorador de mulheres. Sua irmã se prostitui para sustentar os dois. E para piorar, esse sujeito acaba manifestando os poderes do Homem-Aranha... deduzindo sua identidade por tabela. Daí para ele roubar os trajes e equipamentos de nosso herói é um passo. O resultado é que ele se torna um Homem-Aranha mais eficiente e popular, capaz de conquistar a popularidade e respeito que Komori jamais viu na vida, e também de desafiar – com resultados efetivos – a corporação que destruiu a vida de sua família e o tornou o monstro que ele é... mas o buraco é mais embaixo, e a verdade por trás dessa trama (que não vamos contar aqui), torna essa história um pesadelo assustador. Se Peter Parker conhecesse Yu Komori, daria graças a Deus por todos os dias de sua vida e pararia de reclamar por tudo.
Após o término dessa saga, de onde ninguém sairá incólume, a Marvel começou a publicar uma história mais policial ao estilo noir, "Estranhos", com uma das mais belas sequências narrativas de abertura da série. Infelizmente, esta edição – a nº 31 – foi a última publicada nos Estados Unidos. O "To Be Continued" não se concretizou. O que torna mais incômoda essa edição, além de ser o primeiro capítulo de uma história que não seria completa, é que na verdade era o NONO arco histórico dos treze que compunham a série... e portanto anterior à "Sombra do Homem-Aranha". Fechava assim, de forma melancólica, censurado e com ordem de episódios alterada, o segundo melhor quadrinho do Aranha publicado na época pela Marvel nos Estados Unidos (o primeiro, definitivamente, era o Untold Tales of Spider-Man de Kurt Busiek que contava histórias do personagem no seu início de carreira; nos seus quadrinhos de linha, o Aranha amargava os ecos da era Image no seu pior sentido imaginável).
Os Últimos Estertores
Ironicamente esse material teve até algum sucesso no Japão, permitindo a Ikegami tocar sua carreira para frente. O nível qualitativo de sua arte e de sua narrativa subiram em um crescendo e o próprio autor mostrou que poderia experimentar bastante ao narrar, com excelentes resultados e mostrando um senso de dramatização ímpar. Só que, com todo o seu complexo de inferioridade Homem-Aranhaassumido, Ikegami decidiu de vez abandonar a escrita e se limitar ao trabalho de desenhista. Não se deu mal; foi como artista, sob a batuta de escritores de primeira como Kazuo Koike (Crying Freeman), Kazuya Kudo (Mai, a Garota Sensitiva) e Sho Fumimura (Sanctuary), que seu nome se tornou famoso e uma referência para diversos jovens artistas no mundo do mangá; mas o Ikegami escritor, que estava em curso de evolução e que pediu arrego em meio a história, ficou no passado.
O Aranha não encerrou sua trajetória no Japão aqui. Anos mais tarde, em 1978, o cabeça-de-teia ganharia uma série de televisão – só que desta vez, ela não teria absolutamente nada com o personagem e é um produto absolutamente trash, misturando o Aranha a robôs gigantes e invasões alienígenas (e popularizando o conceito criado em 1973 na série Jumborg Ace do herói comandar o, hm, "herói", como vimos nos Jaspions da vida, ao invés de aumentar o seu tamanho como em Ultraman e Spectreman; mas o Aranha foi quem introduziu o conceito na sua forma corrente, com um mecha comandado pelo protagonista). Só que como produto, ela foi melhor sucedida (consta que essas mudanças nasceram justamente a partir da observação dos percalços do mangá), ganhando uma nova versão em mangá desenhada por Mitsuru Sugaya e publicada na revista Boken-O Magazine da Akita Shoten, com um traço mais infantil. Mesmo assim, o sucesso posterior de Ikegami em sua carreira fez com que a versão antiga periodicamente seja relembrada e reimpressa – mas é mais um item cult de colecionador do que qualquer outra coisa.
Se bem que, no frigir dos ovos, a Marvel não pode reclamar do resultado dessas incursões: O Aranha é um personagem lembrado na Terra do Sol Nascente e não foi à toa que a estréia mundial Homem-Aranhado longa Homem-Aranha 3 se deu em Tóquio. Hoje, os Amecomics (como os comic books americanos são chamados pelos japoneses) são publicados para um público fiel mas muito restrito – porque o material estrangeiro nunca vai superar um material nacional que fala para seu povo e para seu público, caso este saiba se comunicar. Se os mangás ascenderam tanto nos Estados Unidos, é porque simplesmente o quadrinho Americano deixou de falar com seus leitores – ele se ilhou em comic stores, aonde pessoas comuns não pisam, transformando o que já foi de expressão popular em subcultura nerd. Quando o canal de comunicação for restabelecido, isso vai mudar. E no Japão, mesmo que os quadrinhos de super-heróis sejam dirigidos a meia-dúzia de fãs por lá, personagens como Batman (cuja versão animada dos anos 90 chegou a ter uma popularidade local respeitável, estando entre as cinquenta animações mais assistidas e obtendo homenagens e referências de autores locais) e Homem-Aranha, mesmo com um ou outro lapso cultural, são reconhecidos e respeitados nesse país, nem que seja apenas como item de merchandising. Isso não é pouco.
Foi por compreender que o produto destinado a um povo deve falar a língua desse povo que a Marvel conseguiu marcar esse tento no Japão.

net/blogs/maximumcosmo

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